Queria que o mundo estivesse em Paraibuna!
João Evangelista de Faria, conhecido como João Rural, tinha 64 anos e 20 dias quando fez sua passagem. Nascido na roça, em Paraibuna, passou a infância entre galinhas e grãos, ajudando nos cuidados com os irmãos. Era o segundo de dez filhos do casal Malvina Borges de Faria e Francisco Cândido de Faria. Quando criança, além dos serviços comuns de uma casa na roça, vendia numa barraca instalada à beira da estrada as hortaliças produzidas na roça do pai e os queijos e doces preparados na cozinha da mãe.
Aos 12 anos, teve um problema de saúde que o levou a permanecer mais tempo em casa, longe dos afazeres do roçado, contudo, próximo da cozinha e dos saberes da alimentação. Enquanto os irmãos e os camaradas de seu pai trabalhavam na terra, no plantio, na manutenção e na colheita de toda a produção agrícola, João auxiliava a mãe e as demais cozinheiras da família na preparação das comidas, aprendendo a picar os temperos, descascar as batatas, cozinhar os ensopados, produzir os refogados e afogados, e por fim, levando as “quentinhas” para o pessoal, e ele também, comer embaixo d’alguma árvore.
Seu Francisco faleceu quando João tinha 15 anos. Ele, assim como os outros irmãos mais velhos, foi trabalhar para garantir o sustento da família, ainda mais que a mãe, dona Malvina, na ocasião, estava grávida de sua 10ª e última filha. Nesta altura, a família já morava na cidade. Apesar da vida dura, contaram com o apoio de amigos e com a sabedoria da mãe que, devido aos seus conhecimentos sobre plantas, proveu a alimentação de qualidade nutritiva para toda a família, mesmo com toda a economia que tiveram de fazer.
Na cidade de Paraibuna, João e seus irmãos cursaram o ginásio. Já nesta época, realizou trabalhos importantes para seu futuro como comunicador. Trabalhou no cinema da cidade, adquiriu uma câmera fotográfica e começou a tomar gosto pela fotografia. Por um período, foi entregador em uma banca de jornal, experiência que estimulou seu gosto pela leitura.
Mais tarde, tornou-se dono desta banca. Somando sua inclinação por fotografia e seu gosto pela leitura, começou a trabalhar na área editorial ainda em Paraibuna. Vale notar que João era uma pessoa voltada ao empirismo e cada vez mais suas experiências de trabalho guiavam-no para sua futura escolha profissional.
Na segunda metade da década de 1970, João se mudou para São Paulo. Primeiramente, fez cursos de fotografia, turismo e gastronomia no SENAC, frequentou o MASP, participou de concursos de fotografia e recebeu prêmios por isto, chegando enfim ao curso superior de Turismo, realizado na Faculdade Anhembi-Morumbi.
O afastamento de sua cidade natal, ainda que com retornos temporários para visitar a família e os amigos, trouxe uma nova percepção para João do seu lugar de origem, das suas raízes rurais. Ele iniciou então suas pesquisas sobre os tropeiros e sobre as práticas rurais em Paraibuna. À culinária caipira, que o acompanhava desde os primeiros anos na roça, somou-se à perspectiva turística que ele havia adquirido em seus estudos universitários.
Alternando entre Paraibuna e a Capital, foi propondo e realizando uma série de atividades para a defesa, preservação, fortalecimento e divulgação da cultura caipira, como a documentação da cultura local, a repaginação das festas cívicas e religiosas do município, a criação da Feira Agropecuária do Alto do Paraíba (FAPAP) e a produção de shows de grupos regionais. Neste período, João Rural assumiu o cargo de diretor de Educação e Cultura da Prefeitura Municipal de Paraibuna e se tornou correspondente de jornais de ampla distribuição regional e nacional.
De volta a Paraibuna, no início da década de 1980, João Rural iniciou uma profusa produção bibliográfica. Publicou livro sobre a história local e sobre as festas folclóricas, produziu o jornal Folha da Serra, editou livro de poemas e desenhos de Benedicto Siqueira e Silva, lançou o “Guia Grandes Lagos”, projeto-piloto do que mais tarde viria a ser o “Guia das Nascentes”, organizou um livro de retratos antigos de Paraibuna e suas gentes, lançou a revista Vale Rural, reeditou o “Almanach de Parahybuna”, além de fomentar a cena cultural da cidade, produzindo o Grupo Rio Acima, por exemplo, e outros músicos e artistas que frequentavam o Caipira Restaurante Bar, dirigido por ele e seu amigo Luiz Vergani.
Todas essas atividades protagonizadas por João foram realizadas com o apoio e parceria de vários amigos e familiares, José Vicente de Faria, seu irmão, Mauro Campos e Dimas Soares, por exemplo, foram participantes recorrentes dos seus projetos neste período. Ainda na primeira metade da década de 1980, começou a trabalhar na assessoria de comunicação da Feira Agropecuária e Industrial de Jacareí (FAPIJA), na produção da revista da Cooper de São José dos Campos e do jornal da Cooperativa de Laticínios de Taubaté.
Eis que novos ares chegavam para João Evangelista, que nos anos seguintes viveria em São José dos Campos, assumindo o cargo de editor do Suplemento Rural do Jornal Vale Paraibano e criando, junto com o jornalista João Carlos Faria, diversas outras editorias para o jornal. Foi neste contexto que passou a ser conhecido como João Rural. E foi também neste momento que tiveram início as viagens dos próximos quase 30 anos de sua vida pelo Vale do Paraíba e Sul de Minas.
Embora sempre retornasse à Paraibuna para passar alguma temporada, logo João saia para a estrada de novo. Articulou-se com Jacareí, São José dos Campos, Tremembé, Guaratinguetá, Lorena, Pindamonhangaba, Taubaté, Caçapava, Silveiras, Areias, Cunha…, enfim, todo o Vale do Paraíba Paulista. O último Guia Nascentes do Paraíba do Sul, publicado em 2013, traz informações turísticas, culturais, gastronômicas e relacionadas ao meio ambiente sobre 37 municípios paulistas, todos eles com nascentes que correm para o grande rio que dá nome ao Vale.
Em 1993, João Rural voltou a residir em Paraibuna, período em que assumiu a assessoria de comunicação da Prefeitura e ocupou uma cadeira no Conselho Municipal de Turismo. No final da década de 1990, João passou dois anos em Silveiras, onde trabalhou como assessor de Comunicação e Turismo do município, fez longas pesquisas sobre o tropeirismo local, sobre a história da região e sobre as práticas culturais. Neste período, coletou informações que culminariam na elaboração do romance histórico “As Quintilhanas”, livro publicado em 2010.
De volta à terra natal, no início dos anos 2000, retomou a produção bibliográfica editando e publicando, em parceria com o irmão José Vicente e o sobrinho Rogério Faria, as revistas Vida Rural e Nascentes. Esse foi também um período de intensa pesquisa e registro da culinária caipira, bem como novas pesquisas e produções sobre as trilhas culturais do Vale do Paraíba.
A partir de 2006, João Rural começou a realizar o Projeto Nascentes do Paraíba do Sul, com patrocínio da Petrobras, que geraria quatro edições do “Guia Nascentes do Paraíba do Sul” (2007, 2009 2011 e 2013), além disso, captou recurso para a produção de livro, documentário e exposição fotográfica “O Templo das Águas e das Tradições”, cartilha infantil “Salvando as Águas”, vídeo infantil “Zóio Bão”, documentário “Danças e Ritos das Nascentes”, livro “Caipiras e Sabores das Nascentes”. Todas essas atividades foram realizadas em parceria com a Petrobras.
Em 2010, junto com sua família, criou o Instituto Chão Caipira “Malvina Borges de Faria”, cuja missão é salvaguardar e difundir o acervo coletado em sua trajetória como pesquisador.
Até o fim da vida, João Rural permaneceu em Paraibuna, sua terra natal, seu chão caipira. A pesquisa realizada durante esses 40 anos havia lhe rendido muitos frutos, registros e vivências, e ele continuou publicando as coletâneas de causos e receitas do Vale do Paraíba, produziu também uma edição especial da revista Nascentes sobre os 100 anos de esportes em Paraibuna.
Em 2012, João Rural sofreu um infarto, recuperando-se logo e continuando sua missão de difusão e valorização dos saberes e fazeres das gentes da roça, do cultivo agrícola e da expressão caipira da cultura popular paulista. Ampliou seu território de pesquisa para além do Vale do Paraíba, alcançando as nascentes do Rio Tietê. Manteve-se conectado às suas pesquisas, sendo convidado a ministrar palestras na região e na Capital, divulgando a gastronomia e a cultura caipira. “No fundo do tacho” foi seu último livro publicado em vida.
Em 2015, a condição de saúde de João piorou. Sua angústia naquela época era uma deficiência visual que se acentuava, dificultando a leitura e a escrita. Participou, no início de junho, da Festa de Santo Antônio em comemoração ao aniversário da cidade, ocasião em que esteve com uma barraca vendendo o bolinho caipira de lambari. Alguns dias depois, em 23 de junho, faleceu João Evangelista de Faria.
Vários projetos ainda estavam sendo preparados e não chegaram a ser publicados, como a Caravana das Nascentes, o “Guia Nascentes Águas Verdes”, em que trataria também resultados de pesquisas em municípios localizados na Bacia Hidrográfica do Rio Tietê, um aplicativo para celular com o nome de Trilha das Águas, a ideia de criação do Centro de Tradições Caipiras, o projeto “Cumê Divagarinho”, o “Guia Tamoios”, cujo objetivo era divulgar aos turistas os atrativos às margens da Rodovia, a elaboração do site Portal RM do Vale, cujo objetivo era difundir as oportunidades turísticas e culturais da região.
Ele também estava trabalhando em um livro sobre as receitas de comidas italianas antigas, levadas para o Distrito de Quiririm pelos antepassados da proprietária do restaurante Casa da Eliza, localizado no município de Taubaté.
Além de suas produções fotográficas e bibliográficas, João Rural também foi criador de documentários e programas de televisão. Na TV Band Vale, dirigiu e produziu os programas “Vale Rural” e “Fogão do João Rural”, este último em parceria com o violeiro Júlio Neme. Na TV Vanguarda, apresentou, no programa Madrugada Vanguarda, o quadro “Panela do João Rural”.
Conhecendo o percurso trilhado por João, percebe-se que sua conexão com a cultura caipira foi construída desde sua infância, o que fez com que sua relação com esse tema fosse pessoal e afetiva. Ele foi um homem que dedicou a vida a experienciar, pesquisar e produzir conteúdo sobre as diversas facetas da cultura caipira. O cunho regionalista é percebido em cada aspecto de seu trabalho. Quando questionado sobre se ele tinha intenções de expandir seu trabalho para outros estados, João respondia que o intuito dele era o contrário, que o mundo estivesse em Paraibuna.
Nasce João Evangelista de Faria;
A família muda-se para a cidade de Paraibuna e, no mesmo ano, para a Vila Camargo;
João Rural enfrenta problemas de doença, iniciando seu gosto pela culinária;
A família muda-se para a cidade;
Falecimento do pai, Francisco Cândido de Faria;
Compra sua primeira máquina fotográfica e inicia o Curso Colegial, que hoje corresponde ao Ensino Médio, em São José dos Campos;
Muda-se para São Paulo para estudar;
Participação em concursos de fotografia, onde é premiado;
Inicia o curso superior de Turismo na Faculdade Anhembi-Morumbi;
Inicia suas pesquisas acerca do tropeirismo e realiza pesquisa e documentação da cultura caipira paraibunense. É nomeado diretor de Educação e Cultura da Prefeitura Municipal de Paraibuna;
Realização da 1ª FAPAP (Feira Agropecuária do Alto do Paraíba). Torna-se repórter e fotógrafo correspondente dos jornais “O Estado de São Paulo” e “Folha de São Paulo”;
Volta a residir em Paraibuna;
Lança o jornal Folha da Serra;
Incentiva e produz o Grupo Rio Acima; lança o livro “Retrato de Um Povo de Um Lugar”;
Inicia seus trabalhos de assessoria de comunicação na FAPIJA; se torna correspondente do jornal ValeParaibano; lança a revista Vale Rural; inaugura o Caipira Restaurante Bar;
Muda-se para São José dos Campos; assume o cargo de editor do Suplemento Rural do jornal ValeParaibano. Inicia suas viagens pelo Vale do Paraíba e Sul de Minas;
Volta a residir em Paraibuna; reedita o jornal Folha da Serra com o irmão José Vicente e o sobrinho Rogério Faria; assume o cargo de assessor de comunicação da Prefeitura de Paraibuna e ocupa uma cadeira no Conselho Municipal de Turismo;
Produção do programa Vale Rural, na TV Band Vale;
Muda-se para Silveiras, onde assume o cargo de assessor de comunicação e turismo do município;
Volta a residir em Paraibuna; lança a revista Vida Rural e a revista Nascentes;
Edição do “Guia Valemar”;
Volta à TV Band Vale para produzir o programa “Fogão do João Rural”;
Início do projeto Nascentes do Paraíba do Sul, com patrocínio da Petrobras;
Lançamento do “Templo das Águas e das Tradições”;
Publicação da 1ª edição do “Guia Nascentes do Paraíba do Sul”;
Publicação do romance “As Quintilhanas”;
Criação do Instituto Chão Caipira;
Realiza pesquisas em municípios da Bacia do Rio Tietê;
Publicação da 4ª edição do “Guia Nascentes do Paraíba do Sul”;
Participa da Feira de Turismo de Paraibuna (FEITUR) vendendo bolinho caipira de lambari;
Falece em 23 de junho.
TV Câmara de Jacareí: Gente em Destaque – João Rural (jornalista) – Parte 1/3
Cultura Paraibuna – João Rural – Oficina “História em construção
TV Câmara de Jacareí: Gente em Destaque – João Rural (jornalista) – Parte 2/3
TV Chão Caipira: O Homem Caipira Por João Rural
TV Câmara de Jacareí: Gente em Destaque – João Rural (jornalista) – Parte 3/3
Rural, João. Retrato de um povo de um lugar: João Rural – 40 anos de imagem – 1970-2010. São José dos Campos: JAC Editora, 2010.
Rural, João. Guia Nascentes do Paraíba do Sul. 4 ed. São Paulo: Editora Gráfica Mogiana; Petrobras, 2013.