Em 12 de agosto de 2024, realizamos uma entrevista online com Maria D’Arc, com o objetivo de compreender a parceria entre ela e João Rural, bem como o processo de trabalho para a produção do livro “Templo das Águas e das Tradições”.
Quem é Maria D’Arc?
Maria D’Arc é uma jornalista que conheceu João Rural no início da década de 1990. João a contatou inicialmente para trabalharem em um projeto sobre o Santuário Nacional de Aparecida. Após algumas filmagens, no entanto, o projeto não prosseguiu, mas a amizade entre os dois permaneceu.
Nos anos seguintes, desenvolveram diversos trabalhos em conjunto, desde participações em vídeos comerciais, produção de guias impressos do Vale Histórico, assessoria de imprensa na FAPIJA (Feira Agropecuária e Industrial de Jacareí), criação de programa independente de TV, o Vale Rural, na TV Bandeirantes. Seguiram amigos e parceiros de trabalho por quase três décadas, até os últimos dias de vida do jornalista João Rural.
A relação de João Rural com o meio ambiente:
Maria D’Arc destaca que João Rural teve diferentes fases em sua carreira, e o meio ambiente foi uma delas. Ela ressalta que, para ele, as questões culturais e ambientais eram indivisíveis, o que fica evidente no livro “Templo das Águas e das Tradições”. A obra aborda a relação intrínseca entre as comunidades ribeirinhas e o rio Paraíba do Sul, evidenciando a dependência do ser humano em relação à água e ao meio ambiente.
“Mostra as tradições culinárias, festas, como as pessoas vivem em torno de um rio, no caso o Paraíba do Sul. Porém, poderia ser qualquer rio. Esse trabalho mostra como a gente depende do ambiente, de como a gente depende da água.”
A visão de João Rural sobre a cultura caipira:
Para João Rural, a cultura caipira representava um modo de vida harmônico com o meio ambiente. Maria D’Arc, por sua vez, confessa que, por ser uma “jornalista mais de cidade”, não tinha essa percepção tão aguçada. Ela reconhece que foi João Rural quem a despertou para essa perspectiva.
“Eu cheguei a fazer muitas viagens com ele, percorrendo as cidades, entrevistando as pessoas. Mas meu olhar sempre era meio desviado para as questões rurais, econômicas, agricultura, este tipo de coisa .Eu escrevi os textos do livro Templo das Águas, sem interferência, a aprovação era feita posteriormente entre nós dois. Com certeza fui levada para essa concepção por conta da vivência e do olhar que o João tinha sobre a cultura caipira. Eu fiz minha construção, mas a concepção veio dele. Também teve um trabalho grande de pesquisa em teses de outros pesquisadores, eu fiz a leitura, absorvi e fui atrás de checar as informações. Às vezes a gente tinha que ler dois, três textos sobre o mesmo tema. Na época de Folha de São Paulo eu escrevi muito sobre o rio Paraíba, eu escrevi muito sobre as cavas de areia, você vê que tem uma parte no livro sobre essa questão dos danos ambientais. Portanto, eu já tinha um conhecimento, eu já tinha muita vivência, cheguei a fazer sobrevoo sobre o rio para conhecer. Essas imagens estão em mim até hoje. Eu também entrevistei muita gente, eu vi muitos problemas ambientais. Então, uma coisa foi se fundindo na outra, porque um livro, se ele não é de ficção e você tira tudo da sua cabeça, aliás, nem um livro de ficção a pessoa tira totalmente da cabeça, você fala para alguém e você cria imagens, você cria as situações, você cria tudo a partir da tua vivência, alguma coisa você viu em algum lugar, você leu em algum lugar. E aí, eu acho que o Tempo das Águas seguiu pelo mesmo caminho, juntou a minha vivência com a do João em campo. Tanto que nessa questão, na época do Templo das Águas propriamente, eu me lembro que a gente não foi muito para campo, foi mais a partir das vivências de nós dois. Enquanto ele selecionava fotos, eu escrevia os textos, depois a gente checava um fato ou outro. Depois ele fez o vídeo que com o Rogério, seu sobrinho..”
A missão do livro:
O principal objetivo do livro era alertar para a importância da preservação das nascentes, considerando-as como “templos” que devem ser protegidos. Maria D’Arc compartilha seu próprio interesse pelo tema, motivado por um projeto de preservação de nascentes em São José dos Campos.
“A missão era chamar a atenção para a preservação das nascentes, porque é onde o rio começa e, às vezes, não é somente a poluição que prejudica um rio ao longo do seu percurso. Os rios estão todos muito prejudicados, mas as nascentes são vitais para que o eles continuem, assim como o reflorestamento em torno deles. E tudo isso deveria ser tratado realmente como templo. E não é o que acontece. As pessoas fazem templos de mármore, plantam os joelhos no chão e pedem a Deus que chova, mas não preservam a água que brota do chão e que vem ali como um presente divino. Então, o objetivo era esse: dar visibilidade para a importância das nascentes, dos rios. A água é essencial para a vida, mas ela vem de onde? E eu tinha um interesse muito grande nisso. Então, a gente trabalhou muito tempo nesta parceria, ele sabia desse meu interesse porque eu fiz o meu trabalho de pós-graduação sobre um projeto de nascentes que aconteceu em São José dos Campos. Para contextualizar, teve aqui em São José um projeto de preservação de nascentes urbanas, conduzido, na época, pela Secretaria do Meio Ambiente (SEMEA). Eu fazia pós-graduação em Comunicação e fiz um trabalho sobre isso, sobre esse projeto. A gente tem inúmeras nascentes na cidade de São José dos Campos. Na ocasião, foram mapeadas cerca de 10 nascentes, e era feita uma parceria com as escolas próximas, que levavam os seus alunos para conhecer o local e plantar árvores, conscientizando as crianças e os jovens sobre a importância daquela nascente.”
Recepção do livro:
Maria D’Arc lamenta que o livro não tenha tido a repercussão esperada na época de seu lançamento (2007). Ela acredita que, se fosse lançado hoje, em um contexto de maior conscientização ambiental, teria um impacto mais significativo.
“Hoje em dia, essa questão da água está muito mais em evidência, tem uma preocupação muito maior do que tinha há 17 anos. A gente está vendo as questões do Pantanal, da Amazônia, de três anos para cá essa questão se tornou urgente, a ficha caiu nas pessoas. Mas o João sempre foi muito visionário. Se ele estivesse aqui, eu não sei do que ele estaria tratando hoje, mas provavelmente seria alguma coisa que a gente vai prestar atenção daqui há uns 10, 15 anos.”
A relação entre cultura caipira e preservação ambiental:
Questionada sobre as práticas da cultura caipira que podem ser prejudiciais ao meio ambiente, Maria D’Arc faz uma distinção entre a cultura caipira tradicional e a agricultura moderna. Ela argumenta que a cultura caipira, por ter uma relação mais próxima da natureza, tem maior capacidade de se adaptar e adotar práticas sustentáveis.
“A cultura caipira é uma coisa, a agricultura é outra. As pessoas que desmataram para fazer pasto trouxeram isso como uma prática feita ao longo do tempo, quando não havia esse entendimento de que o rio poderia morrer. Caía ali dentro do rio, o rio levava, ele era forte, era novo e as cidades não se davam conta do quanto o rio é agredido. Eu não acho que a cultura caipira, o modo de vida caipira é capaz de salvar a humanidade, mas ela é vital, porque o caipira em si tem uma facilidade muito maior de entender e de mudar o que é importante para vida dele. A coisa está acontecendo. O meu pasto secou, meu rio secou, minha fonte secou. Como é que eu resolvo isso? Aí chega um alguém lá e fala pra ele plantar: “planta metade dessa terra que você vai ter água”. Ele vai plantar, ele vai plantar porque aquela água é vital para o animal que ele cria continuar vivo. Então, se chegar informação para o caipira, ele ajusta a conduta dele muito mais fácil, porque ele tem essa percepção do que é realmente vital, do que é importante. Se na cidade fosse assim, você não achava mais uma garrafa plástica na rua entupindo um bueiro. Você não tinha uma indústria poluindo e jogando o resto da tinta, os produtos químicos dela dentro de um rio, sem preocupação com nada do que está ali na frente. Nesse ponto, a cultura caipira vem como solução, assim como a cultura indígena. São pessoas que vivem as necessidades da vida. Elas contêm essa percepção, tanto o indígena quanto o caipira. Eu acredito que realmente a cultura caipira seja para a gente como um modo de vida, uma solução.”
A parceria entre Maria D’Arc e João Rural:
A jornalista relembra os 20 anos de parceria com João Rural, marcados por projetos diversos, como a assessoria de imprensa da FAPIJA, o Guia do Vale e a revisão de livros. Ela descreve João Rural como um homem ativo e visionário, com uma personalidade forte e objetiva.
“A gente tinha os nossos trabalhos individuais, mas sempre com algum projeto juntos. Eu fiz durante vários anos a assessoria de imprensa da FAPIJA junto com ele. Depois disso, outros projetos vieram, como o Guia das Nascentes do Vale do Paraíba, que ele vendia, colocava nos postos de gasolina e restaurantes para vender. Você imagina que esse homem se enfiava por estradinhas que a gente nem sabe que existe, por todo o Vale do Paraíba, em cidades como São Luís do Paraitinga, Areias, São José do Barreiro. Ele seguia por ali e encontrava cabanas, casas, locais onde tinha uma pessoa, uma dona Maria que fazia doce, aquela goiabada cascão, aquela receita de um jeito que ninguém mais fazia. Isso só existia porque ele ia para campo e buscava. E eu achava isso fantástico. Eu fui poucas vezes nessas aventuras, mas fui. Algumas vezes, atolei, bati, tudo que você possa imaginar nessas aventuras aí pelo Vale). A gente tinha histórias hilárias de coisas que a gente viveu. Eu revisava muitos livros, projetos que eram somente dele. Livro de culinária tropeira, de causos e tradições… Tem aquele outro livro também, das Quintilhanas, que ele escreveu sobre uma história que ele apurou, editou o livro e eu revisei com ele, dava uns pitacos. Não sei se dá pra chamar de edição (mudei a construção um pouquinho), porque na verdade eu revisava e dava minhas opiniões. Algumas coisas entravam, algumas coisas não entravam.”
A importância do trabalho de João Rural:
Maria D’Arc enaltece o trabalho de João Rural como documentarista da história e da cultura do Vale do Paraíba, uma região rica em história e tradição. Ela acredita que João Rural tinha consciência da importância de seu legado e que seu trabalho continuará sendo referência para pesquisas e estudos sobre a região.
Como era o João Rural?
“Ele tinha essa forma de se comportar, uma personalidade forte. Eu não sei se o mundo rural fez isso ou se ele era assim. Ele teve um começo de vida muito difícil, com a perda do pai muito cedo e ele se tornando também responsável pela casa, pelos irmãos. Então, ele foi ficando uma pessoa mais endurecida. Eu não tenho nenhum problema com esse tipo de personalidade, você precisa olhar um pouco além da forma como a pessoa está se dirigindo a você e ver se o que ela está falando é verdade. A gente brincava que a nossa relação era assim: “Se o João me der um coice, eu dou dois”. Então ficava tudo certo. E o contrário era verdade também. Se eu desse um coice, levava dois. E não ficava nenhum tipo de mágoa, porque a gente falava com objetividade. Tivemos altas brigas ao longo desses 20 anos, longe de dizer que foi tudo perfeito. Se fosse, eu acho que a gente não teria produzido tanto. Às vezes você precisa das diferenças para você ter resultado. Se eu tivesse baixado a cabeça ou concordasse o tempo todo com ele, talvez a gente não tivesse produzido coisas boas. Eu acho que essa diferença fez parte. E ele era assim. Ele era pão, pão, queijo, queijo. Não dava tempo de ficar: “Olha, por favor, vamos ver.” Não, era bem direto, era tudo bem direto.”
João Rural como narrador do Vale do Paraíba:
A entrevista termina com Maria D’Arc afirmando que João Rural se consolidou como um dos grandes narradores do Vale do Paraíba, deixando um legado importante para a compreensão da história e da cultura da região.
“O que o João fez foi documentar modos de vida, histórias de vida em uma região extremamente rica do Brasil. A gente está falando de Vale do Paraíba, a gente está falando do berço do café, a gente está falando da trilha do ouro. Tudo isso passou por aqui e o João documentou muita coisa. Eu acredito que o João tinha plena consciência da importância da obra dele. Ele se esforçou muito para criar o Instituto Chão Caipira antes de ir embora e ninguém sabia que ele iria embora daquela forma, tão rápido. Ele se esforçou muito. Parece que, de alguma forma, ele intuiu que talvez não ficasse aqui por muito tempo. Ele se firmou como um desses grandes narradores de uma época. Ele trabalhou com a documentação da destruição de muita coisa e com o resgate do que era possível fazer. Então, com certeza, ele é uma pessoa que estará presente em muitos trabalhos de história e pesquisas. João sempre estará presente, como o escritor e folclorista). Esses livros dos quais a gente falou estão aqui há algum tempo. Com certeza eles estarão no futuro, principalmente se estiverem devidamente documentados em sites e tudo mais.”
Por Fábio Bueno, Mestre em História